quinta-feira, 14 de junho de 2018

Texto Júlia Portes


Eu tô sentada do lado de uma mulher de cachecol verde no ônibus.
Ela tá olhando fixamente para um cronômetro e eu não imagino nada que possa ser cronometrado naquele momento. 
Ver o tempo passando ainda me parece angustiante.
Nesse ônibus tem muita gente em pé e eu tô sentada, o que mais uma vez me faz olhar para meus privilégios e para como a quantidade de seres humanos pode transformar tudo num grande inferno.
Eu tô perto dessa mulher, mas de verdade é como se eu tivesse a um passo de mim. É difícil se entregar a si mesmo quando as estruturas te ensinaram a se abandonar.
Se entregar ao outro é ir de encontro a si? Ou antes de me deparar comigo preciso achar que me perdi?
Abro o livro, sempre fico na dúvida entre ler o livro ou olhar as pessoas. 
Tem um senhor tentando ver o que eu tô escrevendo e eu torço pra que ele leia essa frase, apenas por irônia, pois eu adoro esse tipo de intromissão.
É um livro que eu parei de ler há um tempo e agora voltei.
Tem páginas que precisamos de meses pra digerir.
Encontro uma anotação que fiz da última vez que li :
Não contara que encontrar fosse esse grande desencontro.
E depois:
Dar um sentido depressa é sempre se prender ao já vivido?
O senhor parou de tentar ler o que eu escrevo, talvez ele tenha lido o que eu escrevi ali em cima e esteja inibido, talvez ele nunca tenha tentado e isso seja paranoia. A mulher do cachecol verde parou de cronometrar.
Ainda bem. 
Meu dedo lateja por causa de um corte que fiz ontem picando cebola.
Lembro que devo prestar mais atenção nos objetos, ando tropeçando muito. 
Paro de escrever pra ouvir a conversa do lado.

Júlia Portes

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