terça-feira, 13 de outubro de 2015

Dançar é uma forma de amar - Pina Bausch



Entre mesas e cadeiras desertas, um corpo vestido de branco. Atravessa o espaço de olhos cerrados e lança-se contra a parede cinzenta. Uma e outra vez. Corpo cansado, indefeso. Encosta-se, enrola-se, abraça-a como se fosse sua a pele do muro. Não é. É a dor, consciente de si. Abandono. Cegueira. Outro olhar não será possível sobre o terrível esplendor da perda, num palco tão cheio de ausência. O corpo esguio e desaparecente percorre o lugar lentamente, ou numa súbita urgência, e desenha a vertigem: um círculo em redor do vazio. É a embriaguez sonâmbula da insone. Tão frágil o seu corpo. Fantasma. Só, no seu lamento. Mesmo estando lá o seu duplo, ergue-se à nossa frente o desencontro e a impossibilidade do abraço. Como na ária que escutamos: o violino toca desencontrado da voz da soprano.
Será o mais íntimo de cada um este confronto matricial com os fantasmas? Um delírio sonâmbulo. De olhos fechados. Tacteando. Esbracejando por alguém – o eu, o outro – que não pode ser seu, regressando novamente à obscuridade, de onde o queríamos resgatar ou ser resgatados. Incapazes de agarrar o vazio - a parede contra a qual nos atiramos à espera. Num pedido repetido de braços esticados, a que a resposta tarda. E recomeça tudo outra vez. Um corpo cai, levanta-se, cai e levanta-se, cai… (e ouvimos Titânia repetir insistentemente a mesma frase: o let me weep, forever).
A repetição é da ordem do tempo sagrado. Uma forma de entrada no tempo inumano da eternidade: sem princípio nem fim, eterno retorno circular, sem disrupção nem desatenção. Mas a repetição obsessiva e compulsiva é também sinal de um mal-estar humano, de uma angústia que se procura exorcizar pelo ritual repetitivo, e que se torna perturbação incontrolável e ainda mais angustiante3. Perante a repetição dos gestos dos bailarinos, essa esteriotipia encenada, na sua desmesura, o público sente desconforto, deixa a sua zona de segurança. Já não vê apenas um desequilíbrio na ordem temporal, experimenta-o no excesso.
Os gestos repetidos dos seus bailarinos são à imagem do paciente tecer e desfazer de Penélope, que ainda espera o que vem. E que se distingue da repetida tarefa absurda de Sísifo pela possibilidade de um fim. O inferno – o de Sísifo e o nosso - é a impossibilidade do fim: querer morrer e não poder. Mas aqui há ainda e sempre uma saída. No palco, como na rua, o pano cai. E o fim, sabe o corpo, é horizonte que liberta. O limite é condição de começo, de possibilidade. Para aquela que dança, a obediência aos limites do seu corpo não é escravatura, mas o principio de libertação. Nesse corpo-limite vulnerável cria desenhos que são nascimento de outro modo de habitar e se orientar no mundo, que provocam um deslocamento de ponto de vista. Uma saída.
Quem escuta ainda o corpo febril da Pitonisa, quem se vê naquela que nada vê? Ela era Tirésias dançando aquilo que mais ninguém sabe. A cegueira era nela excedência do olhar e não falta – como o rosto de Moisés, que tinha de ser coberto por um véu depois de falar com Deus porque ninguém aguentava o seu brilho. O corpo de Pina estava um passo à frente, sabia primeiro e antes de qualquer pensamento chegar. Sabia antes de saber que sabia. E sobre o palco, como sobre o célebre pórtico de Delfos, um repto é lançado: só uma vida reflectida merece ser vivida. É preciso coloca-la em palco. E não será uma contradição querer ver a obscuridade com os holofotes ligados?
Ela não recusou o palco. É a ele que a rua sobe, onde a sua linguagem é transfigurada em poema-imagem: espelho que deforma para nos vermos melhor. Ternura e crueldade, baile e luto, o desejo e o conflito dos corpos, o sexo e os sexos. Ela conhecia profundamente a arte do desiquilibrismo, da arritmia. E tanto podia dançar a sua íntima respiração atenta, como reordenar o caos de um mercado ou praia. Tornava a angústia tangível e celebrava a alegria mais incontida. E mesmo na mais lacrimosa violência, na terra devastada, nas feridas mais abertas, desprendia-se a beleza desarmante. A beleza. De quem, estando no mundo, inaugura nele um reino que não é deste mundo - e por isso ameaça-o de destruição, porque pode renová-lo, recriá-lo a partir dos destroços. Como só o amor pode.

Dançar é uma forma de amar. Desse amor que expulsa os amantes do mundo, dizia Hannah Arendt. Amor que é, por isso, força antipolítica e, ao mesmo tempo, a raiz de todas as revoltas que querem justiça, mostraram-no Antígona e Prometeu. Da mesma maneira que o amor, a obra de arte expulsa do mundo, para a ele fazer regressar. Já outro. Uma passagem, uma porta-giratória: Pina oferece sempre uma saída, que é uma entrada num mundo mais largo. Mesmo que para lá chegar seja preciso abrir a porta para a noite mais cruel, aquela que proibiram de abrir.
A poesia tem a sua origem mítica no confronto com a morte – o absoluto fora do mundo, porque a morte não é experiência possível. Como o amor, como a obra-de-arte, também a morte nos expulsa, mas de forma absoluta. É a im-possível. E dela só pode dar testemunho aquele que desceu à sombra e se tornou vestígio dessa descida impensável e intestemunhável ao reino dos mortos. E uma testemunha só o é porque transporta algo de intestemunhável que fica necessariamente oculto, obscuridade essen­cial, experiência pessoal incomunicável de um conhecimento que queima e cega. Reduto do indizível. E quando ela dançava, ou fazia dançar, testemunhava o intestemunhável do testemunho. O seu corpo apontava: Vê, a Noite, ela mesma, está aqui.
Disse: “Por vezes, queremos falar de qualquer coisa e chegamos lá muito perto. Mas compreendemos, também, que é tão importante que parece estúpido só o facto de o mostrar. Então é como se o “vestíssemos” com outra coisa, porque mostrá-lo parece-nos arriscado, temos medo. É algo demasiado grande”. E esclareceu: “Há algo de muito mais sério do que aquilo que o público, em geral, pode ver. E existe, está ali, mas não vai ser exibido, porque eu quis escondê-lo. É como se houvesse sempre um grande conflito entre aquilo que queremos tornar claro e aquilo que nos serve para nos escondermos” . Ela lutava contra si própria, de olhos bem fechados, para resgatar Eurídice, mas sem a poder deixar sair do reino subterrâneo. Orfeu volta-se, Pina esconde-se. A obra não ressuscita o morto, aproxima-o do mundo mas já não é deste mundo: os braços fantasmagóricos de Eurídice tornam-se inalcançáveis e ela regressa à escuridão. E nós continuamos, regidos pelo tempo do sol e da lua.
Ao olhá-la, ao ver o seu ser-corpo que dança, compreendo a verdade da enigmática interrogação de Simone Weil: “Descer num movimento onde a gravidade não tem lugar... A gravidade faz descer, a asa faz subir: que asa à segunda potencia pode fazer descer sem gravidade?”. A resposta encontra-a Simone Weil na lei divina da graça: “A criação é feita do movimento descendente da gravidade, do movimento ascendente da graça e do movimento descendente da graça à segunda potência”. Pina Bausch era também a cheia de graça. A que se atirava ao pó e à cinza, ao chão nosso quotidiano, como ao céu mais puro.
“O céu dos santos é debaixo dos seus passos a própria terra” – escreveu Philippe Lacoue-Labarthe, pensando em Pasolini. Também por Pina Bausch agora o afirmo, e re-escrevo: na prática, ela foi justa. A sua forma de ascensão é resultado da graça mais elevada, a de segunda potência, a graça que é já movimento descendente. Em direcção à terra, à rua. E só os que não receiam sujar os pés e tocar o putrefacto a conhecem e podem transfigurar. E retomo o suspiro de um outro santo, para repetir envergonhado: tarde te amei.

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