O chope nem tinha chegado quando a viu. Estava a quatro mesas de distância,
de costas para ele. Reconheceu-a pela nuca, pelos gestos, voz, tudo. Talvez não
precisasse de nada daquilo, bastaria o campo magnético que sua presença criava.
Foi quando se tocou: numa inversão perfeita da máxima tão querida por
escritores de autoajuda, o universo conspirava contra ele.
Não fazia sentido, claro. Pelas últimas notícias que haviam chegado anos
atrás aos seus ouvidos, sem que as buscasse, ela
estava morando na Europa, casada com um estrangeiro, a um seguro oceano de
distância. Não era verossímil que presidisse aquela mesa ruidosa de jovens
vadios, todo mundo com cara de artista ou parasita de artista, no meio de um
dia útil no bar ao lado da sua casa.
Chegou o chope e ele tratava de entorná-lo num único gole para ir embora
correndo quando ela, virando-se por algum motivo, o viu. Viu, abriu um sorriso,
acenou. Ele não teve a força moral necessária para deixar aquele abano
pendurado sem resposta no ar do botequim, boiando na atmosfera engordurada.
Adoraria ter feito isso, mas sem se dar conta reagiu ao gesto simpático com uma
inclinação seca de cabeça. Talvez tenha passado por sorriso seu involuntário
ranger de dentes.
– Como você está, meu querido?
De repente a mulher estava a seu lado, curvada sobre ele, interminável como
antigamente. Seu olhar foi subindo devagar da saia vaporosa de aparência cara e
barra irregular na altura dos joelhos, passou pela barriga apertada numa blusa
de cetim indiano azul-pavão, pelas colinas que tensionavam de leve o tecido,
ladeando o pingente de ametista aninhado num decote em V. Ali o olhar parou um
instante para tomar fôlego, mas logo retomou a escalada, alcançou o pescoço e
continuou a subir. Quando já parecia tarde demais conseguiu se desviar para um
ponto vazio no espaço ao lado da cabeça da mulher, manobra radical executada na
derradeira fração de segundo antes da colisão com os traços do rosto, que
poderia ser fatal, mas não adiantou: ele sentiu uma colônia instantânea de
gotinhas de suor tomar posse da área enrugada sobre sua boca.
Pronto, pensou, com o fatalismo enraizado e denso de seus oitenta e dois
anos: vai começar tudo outra vez.
Sérgio
Rodrigues
segunda-feira, 24 de abril de 2017
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